2 de março de 2010

"Bicho"


Ele não estava acreditando até agora. A sensação era fantástica. Um misto de alívio e ansiedade dominavam o seu ser. Era certo de que não conseguiria dormir. Amanhã seria o grande dia. Medicina, na federal não era para qualquer um. E logo de primeira! Não via a hora de começar as aulas. Seus pais estavam orgulhosos, também, tinha dado o retorno dos R$ 500,00 investidos todo mês, por um ano, em um cursinho que ele fazia depois da escola. Não conseguia esconder o sorriso no rosto. É claro que a sua conquista acarretou mudanças profundas: iria sair da cidade e se separar da namorada, seu amor há três anos. Mas estava feliz. Valia a pena. Ia para uma das melhores faculdades do Brasil e nem ficava muito longe de casa. Poderia voltar todo o fim de semana se estivesse disposto a encarar 3 horas de viagem. Ah, amanhã que não chega. Vai conhecer gente diferente, começar uma nova etapa da vida, crescer... Apesar de ser novo, 18 anos, se importava com “essas coisas caretas”. Mesmo tendo uma vida confortável, aprendeu desde cedo que nada vem de mão beijada. Palavras do seu pai, tão fortes, que conseguia ver direitinho ele pronunciando sílaba por sílaba. E ficou divagando até dormir. Acordou com o céu ainda escuro e sem estrelas. Hoje, iria de carro e a viagem ficaria mais curta. As malas já estavam prontas e ficou combinado de seu pai deixá-lo na faculdade, para depois levar a sua bagagem na república, seu novo lar. Despediu com carinho da mãe que chorava de orgulho, alegria e angústia. Da namorada, tinha se despedido na noite anterior, com muitas juras de amor e promessas de telefonemas diários, conversas pelo MSN e afins. A estrada estava tranqüila, só ele que estava agitado. Mexia no banco sem parar. Nenhuma posição estava confortável. Olhava a paisagem que alterava as suas cores entre verde e cinza. Até que, finalmente, chegou. Despediu do pai que passou mais algumas recomendações, desde "divirta-se com responsabilidade" até "não esqueça quem você é". E também, o nada original, juízo. Desceu e ficou estático. Que lugar enorme. Tinha anotado o número do seu prédio e sala, mas não sabia nem por onde começar a procurar. E, bom, a aula começaria em meia hora. Andou muito, mas estava ficando perdido. Queria perguntar a alguém, mas seus colegas tinham avisado para tomar cuidado. Ouviram falar que quando um novato pede informações, eles indicam um lugar errado só para terem o prazer de verem eles mais perdidos. Só que, mais perdido do que estava não podia ficar e não queria chegar atrasado a sua primeira aula. Tomou coragem e perguntou a um jovem:

“Ei, sabe me dizer onde fica o prédio de Medicina?”

“Primeiro dia?.”

“É.”

“Todo mundo fica perdido, mas estou indo para lá. Estou no 4º período e mostro sua sala.”

Ele decidiu acompanhar. Não via problema, o pátio ainda estava movimentado e se percebesse qualquer mudança, sairia correndo.

Andaram até um prédio. Era o de Medicina. "Até que enfim !", ele pensou. Tinha encontrado o lugar e sem qualquer problema. Quando virou para agradecer o rapaz que te ajudou, já se viu caído no chão. Sentia uma dor intensa na cabeça. Passou a mão e olhou. Era sangue o que molhava a sua testa. Tentou se levantar, mas ganhou um chute no abdômen que o fez gritar. Quando abriu a boca para falar, um rapaz a segurou com brutalidade para que ficasse aberta. O cara despejou um líquido. Ele engoliu um pouco e cuspiu o resto. Era amargo e muito fedorento. Com um pouco de consciência que tinha, no meio daquela confusão, percebeu que não era bebida alcoólica. O cheio denunciava ser outra coisa. Recebeu outro chute, dessa vez nas pernas. E também um soco no peito. Rolava no chão, não conseguia respirar nem entender nada. Só via muitos rostos, braços e mãos. Tudo o agredia. Até que sentiu um baque no rosto e mergulhou no escuro. Antes de apagar por completo, ainda pode ouvir risadas e os outros caras gritando “bicho !”, “se ferrou !”.


(,,,)


A ambulância chegou no local. Já havia uma hora que uma funcionária da faculdade, que passou por ali, tinha visto um rapaz desacordado e ensaguentado estirado no chão. Correu e avisou a reitoria, que logo ligou para o 192 e foi para o pátio. Após identificarem o aluno agredido, ligaram para os seus pais. Socorrido, o “bicho”, foi levado para o hospital mais próximo. Estava inconsciente. Tinha sido facilmente abatido. Seu estado era grave: traumatismo craniano e coma induzido. Quando seus pais chegaram ao hospital, não acreditaram na notícia. Viram o filho inerte e dessa vez, as lágrimas da mãe eram de tristeza e desespero. Pediram explicações aos médicos, aos responsáveis pela faculdade e quando a resposta não era "quadro estável", era "vamos investigar quem fez essa bizarrice". No fim, a resposta era uma só: "não sabemos o futuro do seu filho". Foram horas de resistência, mas o animal ferido e coagido não conseguiu. Morreu. Acredito que mais de desgosto, do que de todas as feridas que tinha pelo corpo. Morreu com ele a esperança de uma vida melhor. Morreram os sonhos, viagens, namoros, trabalhos, novos amigos, seus filhos e netos. Morreu a justiça. Os verdadeiros bichos ainda estão soltos, caçando mais filhotes, na alta temporada que o verão traz. Na manhã seguinte, cinza e chuvosa, as lágrimas da mãe eram de raiva e impotência. Sua vida havia silenciado, como outras centenas de vidas no país.

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